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quarta-feira, 16 de março de 2011

Introdução

A ideologia municipalista constitui uma das construções discursivo-programáticas mais antigas e resilientes da cultura política brasileira. Como se analisa a seguir, essa resiliência e capacidade de renovação está associada, fundamentalmente, à ambigüidade do conceito. Assim o municipalismo adquire, em larga medida, o status de "leito de Procusto" de componentes importantes da cultura política nacional. No entanto, pode-se localizar períodos da história republicana em que o municipalismo adquire notável capacidade de mobilização e surpreendente apelo programático, como ocorre no Estado Novo e no pós-guerra. O presente texto explora, analiticamente, as origens e o desenvolvimento do municipalismo e sua relação com a modernização do Estado no Brasil, no período 1920-1960. Nesse sentido são analisados: a genealogia do municipalismo e sua relação com a ideologia antiurbana da República Velha; o discurso e a prática municipalista no Estado Novo; os desdobramentos institucionais do movimento municipalista durante a redemocratização do país: a Associação Brasileira de Municípios e o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM); e, finalmente, sua conversão em instrumento racionalizador da moderna gestão urbana no país.

Municipalismo, agrarismo, federalismo e cultura política

Historicamente, as ideologias antiurbanas e agraristas constituíram construções programáticas importantes que floresceram no contexto de tránsição das sociedades agrárias para as sociedades urbano-industriais. Os exemplos mais destacados de ideologias antiurbanas são os populismos agrários russo e americano dos fins do século XIX. A ideologia que permeou parte importante da produção intelectual e artística inglesa dos séculos XVIII e XIX inscreve-se na mesma matriz. Tal matriz estruturou-se, como amplamente discutido na literatura, no contexto da rejeição à nova ordem burguesa e urbano-industrial. Ao lado das utopias socialistas e operárias e das construções do pensamento conservador católico, a ideologia antiurbana e o agrarismo constituem peça importante do repertório intelectual e político de reação à nova ordem que emergiu no século XIX.

No Brasil, o agrarismo e o municipalismo - que, como se verá, mantêm afinidades eletivas - remontam ao Segundo Reinado. Na realidade, o municipalismo tem precedência histórica, emergindo com a crítica que importantes pensadores e publicistas liberais fizeram à centralização política. Durante o Império é que nasce a bandeira municipalista. Embora ainda não imbricada com o agrarismo, a questão da autonomia municipal e provincial era uma peça importante - senão fundamental - da crítica política dos liberais. E nesse contexto que emergem construções intelectuais mais acabadas, sobretudo associadas à figura que veio a se consagrar como o principal ideólogo do municipalismo, Tavares Bastos.(1) Profundamente marcado pela leitura de Tocqueville, Tavares Bastos propugnava pela descentralização administrativa e política do Império, e pelo rompimento com o modelo monárquico, unitarista e centralizador, de inspiração francesa, adotado no país. Seu ideal era a República federativa, cuja encarnação concreta era a jovem nação americana louvada por Tocqueville. A crítica que tecia era sobretudo de ordem política e administrativa e era centrada na noção de autonomia. Com efeito, o local self-government, que tanto enaltecia, e o programa abrangente de descentralização que elaborou em A Província, confundiam-se com um projeto de ampliação da participação política - pela generalização de eleições - e de liberalização do regime. República e federação eram conceitos assimilados por vários publicistas - dos quais Bastos é o maior expoente - à idéia de municipalismo. Com efeito, a "polêmica do federalismo vinha se concentrando" - ao final do Segundo Reinado - na bandeira da "libertação do município" (Carvalho, 1946:78; cf. também Maia, 1883). Carneiro Maia, por exemplo, tendo em mente os ideais republicanos, assinalava em 1882 que "quando se visa um plano sensato de reformação social, é preciso construir de baixo para cima" (1983:XII).

A fusão entre o municipalismo e o ruralismo ocorreu, na República Velha, na obra de Alberto Torres. Em larga medida - e paradoxalmente - as idéias de Torres correspondem a uma crítica ao ideal federativo de Tavares Bastos. Mais acertadamente, sua obra deve ser entendida como uma crítica à não-realização plena e à inviabilidade do projeto (utópico) de uma nação construída pela agregação de interesses individuais e grupais de caráter local. O agrarismo emerge como a construção intelectual que descobre o país real, estruturado por clãs locais dispersos nos municípios num imenso território, e o país legal, idealizado e inorgânico. Torres, como já amplamente discutido, foi o principal articulados ideológico da noção de que o Brasil seria uma nação de vocação eminentemente agrária. Em A Organização Nacional - obra que forneceu as balizas ideológicas do ciclo da Revolução de 30 - Torres explora temáticas que se tornaram, subseqüentemente, idéias-força da cultura política brasileira: a da vocação rural da nação e da disjunção entre o país real e o país legal, o que levaria, para sua superação, à necessidade de um Estado forte e centralizado (Torres, 1978). Esta última distinção encerra uma dimensão territorial: o país legal é, nessa perspectiva, o país urbano, "sibarita" e cosmopolita, enquanto o país real é o mundo rural - onde jaz o cerne da brasilidade. Para Torres, a instauração do regime federativo no país representou seu "desmembramento" e a exacerbação do isolamento dos municípios.(2) Como já amplamente explorado na literatura, o tema da redenção do mundo rural permeava o projeto de um importante setor da intelectualidade brasileira, do qual fazem parte Alberto Torres, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e, principalmente, Oliveira Vianna. Como ideólogo quase oficial do Estado Novo, Oliveira Vianna veio a ter, como se sabe, profunda influência na formulação das políticas públicas da era Vargas.

Para Vianna, "o brasileiro, entregue a seus pendores e instintos, é antes de tudo um homem do campo. (...) É este o traço realmente nacional de seu carácter". (Vianna,1975:19). Essa visão se associava à noção paralela de que a industrialização representava um processo artificial. O debate corrente na década de 30, em que se alinhavam os críticos das "indústrias artificiais", por um lado e os ideólogos da industrialização, por outro, é marcado fortemente, como se sabe, pelo tema do agrarismo introduzido por Torres e Vianna. O processo de urbanização era também visto não só como artificial, mas também como profundamente danoso ao país, intimamente associado à degeneração do caráter nacional, em sua visão.

"o que está dando à nossa sociedade essa apparência de corrupção e degeneração (...) pode-se compendiar nesa formula synthetica: - tendência, de origem recente, das classes superiores e dirigentes do paiz a se concentrarem nas capitaes. (Vianna, 1975:21, grifado no original).

Antecipando críticas contemporâneas da burocratização da vida política, Vianna afirmava que:

"no império, a relação social dessas duas classes (doutores e políticos) podia ser figurada pela equação: político mais doutor = fazendeiro; na República, esta equação se altera e passa a ser formulada assim: político + doutor = burocrata. Parece nada; mas, é uma revolução" (idem, p. 26, grifado no original).

O que Vianna está criticando é, na realidade, o patrimonialismo. A expansão de um sistema político caracterizado pela existência de uma classe cada vez mais numerosa de profissionais da política, que tem no aparelho burocrático do Estado o instrumento de sua reprodução social. O mundo urbano constitui-se, nessa perspectiva, no locus privilegiado desse estamento burocrático que é o germe dos faccionalismos de toda ordem. A equação de Vianna formulada em termos contemporâneos é que a a urbanização equivaleria à expansão do patrimonialismo. O caráter esparso e rarefeito da urbanização do país, restringindo-se à faixa costeira e em função do comércio exterior, expressaria, nessa perspectiva, seu conteúdo artificial e anômalo: as cidades estavam de costas para a nação. A solução, apontada por Vianna numa conhecida polêmica com Olavo Bilac, é "o retorno aos campos":

O dia em que os nossos doutores e os nossos políticos actuaes assentarem, como as gerações de há cincoenta asnos passados, na posse tranquilla de um domínio rural, o seu ideal de felicidade, a alegria voltará ao nosso povo; o tonus moral da sociedade se revitalizará de prompto; a lucta pelas posições não imporá às consciências o sacrifício dos seus escrupulos superiores. (idem, p. 27, grifado no original).

A "utopia" de Vianna (Carvalho, 1991) expressa prima facie uma reação de elites rurais face à perda de sua hegemonia, num quadro de transição para a sociedade urbano-industrial. Essa interpretação foi criticada por Gomes (1980) numa análise penetrante. Na realidade, a ideologia antiurbana de Vianna associava-se também a uma crítica da grande propriedade fundiária e, sobretudo, à utopia de uma sociedade assentada na média propriedade e numa classe média rural. Nesse sentido, a ideologia antiurbana no Brasil da República Velha- ao contrário de suas congêneres nos EUA e Europa - aponta para um projeto de transformação e modernização da sociedade, e não de restauração de uma ordem pretérita.

O caráter modernizaste e militante da ideologia antiurbana manifesta-se nos inúmeros manifestos e propostas enunciados durante o ciclo da Revolução de 30. Na década de 20, o agrarismo enquanto estratégia de nation building informou a formulação das campanhas de saúde pública (Santos, 1985). Seria na década de 30, no entanto, que essa estratégia encontraria expressão política mais abrangente - mas que permaneceria como projeto. Como assinala Gomes, o componente essencial e radical da ideologia agrarista - a reforma agrária viabilizando uma classe média de pequenos e médios produtores "à americana" - malogrou. O agrarismo, portanto, constituiu, em larga medida, a dimensão não-realizada, perdedora, do projeto de modernização brasileiro gestado na República Velha.

Numa perspectiva ex post pode-se afirmar que o ciclo da Revolução de 30 está associado simultaneamente ao ideário antiurbano e à construção da identidade urbana do país. Na realidade, ao longo desse período processou-se uma transmutação onde a dimensão urbana do varguismo aparece como a contraface do ruralismo - e o supera (Gomes, 1987). O abandono do agrarismo não parece estar associado a um projeto articulado que a ele se oponha no plano político. Parece antes ser o produto não antecipado de um conjunto complexo de projetos qüe foram gestados entre 1930 e 1945, no seio da coalizão multifacetada que viabilizou as transformações ocorridas.(3)

Manifestações diversas do agrarismo podem ser encontradas nas propostas de partidos e associações como a Sociedade de Amigos de Alberto Torres e o Clube Três de Outubro.(4) No Estado Novo, sua expressão paradigmática é o programa "Marcha para o Oeste", lançado em 1941 (Azevedo, 1988). A redenção do sertão teria início com a ocupação do território nacional, a partir da criação de colônias agrícolas no interior do país - projeto que, significativamente, mantinha intocada a estrutura agrária. O agrarismo modernizador informou também parte importante do projeto de modernização administrativa implantado na era Vargas. A criação de órgãos essenciais à estratégia de modernização do país, como o Instituto Nacional de Estatística, INE (1934), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE (1938), e o Departamento Administrativo do Serviço Público, DASP (1938), foi fortemente influenciada pelo ideário ruralista e municipalista. Como será analisado em seguida, foi exatamente nesses órgãos que se gestou a elite burocrática que formulou o municipalismo pragmático da década de 40. Vale enfatizar, por exemplo, que o IBGE-que foi uma instituição central nesse movimento - foi criado como órgão de administração colegiada, em cuja direção os estados, os municípios e a União tinham paridade de representação, numa clara estratégia de construir a nação a partir do município. (Valdemar Lopes, entrevista ao autor).

Após a Revolução de 30 e particularmente durante o Estado Novo, o municipalismo foi elevado à condição de princípio programático das elites governamentais e de peça importante da estratégia de nation-building perseguida.(5) Exemplo destacado é a proposta, na Constituinte de 1934, do ex-tenente e ministro Juarez Tavora - e também presidente da Sociedade de Amigos de Alberto Torres - de reorganização do país em uma federação municipalista. Nela, os estados desempenhariam apenas o papel de "intermediário escrupuloso entre a união soberana e os municípios autônomos, com a finalidade precípua de adaptar as normas gerais emanadas daquela, às peculiaridades locais destes" (Távora citado em Duarte, 1942:201). A extensa literatura propagandística e a produção intelectual de pensadores e de juristas "oficiais" do regime, como Almir de Andrade e Francisco Campos, associavam o federalismo e a descentralização à degeneração da vida política e aos faciosismos políticos da República Velha.(6) A "tendência descentralizadora" da Constituição de 1891, nessa perspectiva, teria "permitido que o município se constituísse em verdadeira organização localista e desagregadora das energias nacionais" (Andrade, 1941:183). Com efeito, nessa literatura, federalismo e regionalismo eram entendidos como antagônicos aos interesses nacionais e coletivos. Num quadro em que os partidos políticos eram agremiações estaduais, os estados encapsulavam a própria noção de política. O episódio da queima das bandeira estaduais, em ritual cívico durante o Estado Novo, não poderia ser mais expressivo dessa visão.

A adoção da ideologia municipalista no Estado Novo representaria um paradoxo. Por um lado, a Constituição de 1937 e a legislação específica sobre municípios é profundamente centralizadora. A autonomia do município em matéria financeira, por exemplo, foi restringida, como também foi proibido o endividamento externo municipal. Por outro lado, a Constituição elege o município "como órgão constituinte dos poderes".(7) O Estado Novo apresenta-se como a encarnação do "verdadeiro municipalismo", o qual, supostamente, transcenderia princípios constitucionais vazios como o de "peculiar interesse local". Para além do idealismo da Constituição - para parafrasear Oliveira Vianna - e suas disposições estranhas ao "gênio" brasileiro, a vida econômica e política local seriam redimidas.

O paradoxo entre o ideário municipalista e a prática centralista dissolve-se quando se incorpora à análise a crítica autoritária - e hegemônica nos anos 30 - ao conceito liberal de representação. Embora o projeto político das elites autoritárias da Era Vargas se caracterize por uma profunda centralização política, administrativa e financeira - e, portanto, contrária ao conceito de autonomia que é subjacente ao municipalismo -, ele se baseia numa concepção plebiscitária (Pitkin, 1967) e corporativa de representação política. Nessa concepção, o município - matriz básica da sociedade política - está orgânica e simbioticamente entrelaçado com o poder central. Sem mediações - de instâncias territoriais ou político-partidárias - que distorçam essa identidade de fins, a articulação entre os dois níveis está assegurada pela centralização, que aproxima e reúne os dois pólos. O município emerge, nessa perspectiva, como uma esfera comunitária - portanto pré-política - que acomoda apenas a coletividade das famílias e seus valores ainda não distorcidos pelas instâncias de representarão. Essa reunião entre os dois pólos, no entanto, é que permitiria a instauração da esfera pública sobre a ordem privada, particularista e não-comunitária. Essa visão contrasta fortemente com a visão municipalista liberal - articulada por Rui Barbosa - que busca resguardar essa esfera privada da esfera pública. Para esse autor, na linha de Taine a quem ele se refere, o município é um "sindicato privado", "não tem política, não está na esfera política. Sua administração pertence à categoria dos negócios comerciais" (Barbosa, 1898:287).

Verifica-se, assim; que por sua ambigüidade, o municipalismo pode ser apropriado de formas múltiplas, permitindo que possa se constituir numa das mais arraigadas e reiteradas peças discursivas da cultura política brasileira. O municipalismo adquire o status de "leito de Procusto" dessa cultura política: uma ideologia perene e consensual que não encontra opositores no campo político.


Administração versus política: a campanha municipalista e a criação da ABM e do IBAM

A invenção da tradição municipalista

Durante a redemocratização de 45, o municipalismo ressurge com um apelo doutrinário espetacular, vindo a ter forte penetração na Constituinte de 1946. Não seria exagerado supor que se buscou, em larga medida, convertê-lo em mito fundador da segunda República. Durante a campanha presidencial, o municipalismo ocupou lugar de destaque na agenda pública, levando ao surgimento da Campanha Municipalista e à criação da Associação Brasileira de Municípios (ABM). O municipalismo - por sua ambigüidade - cumpriu o papel singular de reconciliar varguistas e antivarguistas na Constituinte de 46. Ele incorporava, a um só tempo, a ideologia rural salvacionista do Estado Novo e a crítica ao centralismo e à perda de autonomia das instâncias subnacionais ocorrida no período. Embora o municipalismo tenha tido forte penetração nos círculos de juristas liberais de oposição ao Estado Novo, a liderança da Campanha, que se filiava estreitamente à tradição intelectual do agrarismo modernizador, não entendia a questão da autonomia política - consubstanciada na questão da eletividade dos prefeitos - como a bandeira central do municipalismo:

"O problema do município, no Brasil, não consiste, apenas, em atribuir-lhe, por processos de concessão legislativa, maior ou menor grau de autonomia. Não é eletivo, nem tampouco doutrinário (...) É problema tipicamente agrário (...)". Com efeito, "no atual sistema econômico, em que predomina o regime latifundiário e os processos econômicos dele decorrentes (...) a autonomia política de caráter meramente constitucional servirá, apenas, para prolongar os males coloniais: a entronização, no poder, dos representantes da elite rural, expressões legítimas dos grandes proprietários de terras e incondicionais defensores desse clima de desigualdade favorável aos seus interesses" (Medeiros, 1947:50, meu grifo).

Traços marcantes do agrarismo podem ser encontrados, também, no discurso de instalação da ABM, pelo seu presidente, apresentado pela Campanha Municipalista à Assembléia Constituinte e no qual se apontava o mal maior que afligia o país: "a criação de uma indústria artificial, em sua quase generalidade" e o desequilíbrio surgido entre esta e a produção agrícola (Xavier, 1946). Esse "surto industrial" teria determinado "a concentração demográfica em certos centros urbanos", o que teria acarretado "sensível desfalque nos municípios" (Medeiros, 1947:95). O tom moral da ideologia antiurbana adquire nesse discurso grande força:

"As indústrias destinadas a manter uma vida de prazeres e luxo, e que normalmente são as mais lucrativas, cresceram e se muliplicaram nas metrópoles. As demais igualmente nelas se reuniram, em busca de maiores mercados de consumo (...) Além disso, favoreceram a concentração: as grandes construções; a burocracia, rendosa e fácil; os negócios; as atrações naturais dos grandes centros; e, ainda, com seu cortejo de misérias morais, o jogo, que no Brasil chegou a eliminar os últimos resquícios de pudor dos homens públicos, os quais transformaram a roleta e o vício em fonte de renda (...) sob o pretexto de atender, com o produto dessa criminosa exploração, as obras de caráter social. Os cassinos deslumbrantes e o pif-paf, ainda que em modestos lares, simbolizam uma época e comprometem os destinos de um povo" (Xavier, 1946:4, meu grifo).

Em outro lugar Xavier concluía de forma espetacular que "este estado de coisas demorou tanto que já o urbanismo, no Brasil, devorou o país e agora também se acha dominado pela autodestruição" (Xavier, 1948:66, meu grifo). O momento para ele era de crise:

"Chegamos ao clímax da crise que a inépcia dos nossos grupos dirigentes teimou em criar, numa inconsistente e vaidosa incompetência que se manifesta no ingênuo orgulho dos nossos pseudo-estadistas pelas avenidas abertas, pelos prédios de mau gosto construídos, num requinte de luxo em que se extasiava a basbaquice nacional".

O leitmotif da campanha era, como se vê, a modernização do "interior". Deve-se notar, no entanto, que a questão da autonomia política dos municípios era fundamental por seu apelo simbólico. Assim se assiste, nesse período, a uma elaboração discursiva, mítica e apologética em torno da autonomia das câmaras municipais no Brasil colônia e do papel do município nos movimentos nativistas (cf. entre muitos outros: Zenha, 1948; Medeiros, 1947; para uma discussão teórica, Guimarães, 1988). Reinventa-se, nesse movimento, a tradição para descobrir um suposto país real na esfera local.

Malgrado sua vinculação com movimentos sociais de resistência à ditadura, o municipalismo emerge no pós-guerra como uma construção intelectual elaborada, no âmbito do Estado, por elites burocráticas, e que mantém, como assinalado, uma associação estreita com a tradição intelectual autoritária e modernizadora da República Velha. Nesse sentido, a campanha municipalista deve ser entendida como uma estratégia discursiva dessas elites e não como um movimento social galvanizador de demandas de elites locais insatisfeitas com o Estado Novo.

Para além de sua forte influência na Constituição de 1946 - expressa inter alia na nova repartição intergovernamental de receitas entre níveis de governo e na nova definição liberal da autonomia municipal - a campanha municipalista logrou ter, como será analisado, um impacto decisivo nas políticas públicas. (Medeiros, 1947:104-20; Sobrinho, 1950). A cruzada municipalista adquiriu maior articulação com a criação da ABM, em 15 de março de 1946. O timing dessa criação é expressivo: buscava-se consolidar um lobby municipalista na Constituinte, que então iniciava seus trabalhos. O programa da ABM incluía entre seus objetivos: o estudo da organização, do funcionamento e dos métodos de trabalho dos municípios brasileiros, visando sua melhoria; a promoção de intenso intercâmbio entre os vá rios municípios e à assistência técnica aos mesmos; a disseminação das técnicas de administração municipal, mediante realização de conferências, congressos e publicações; e a consecução dos objetivos de cooperação da Comissão Interamericana de Cooperação Intermunicipal, de acordo com as recomendações dos Congressos Panamericanos de Municipalidades e da VI Conferência Americana Internacional.(8)

A forte mobilização nos meios intelectuais e burocráticos e o êxito espetacular da campanha levaram a que se propusesse a idéia de conversão do movimento em partido político. A proposta partiu de militantes do Movimento Popular Municipalista, liderados por Valadão Furquim no interior de São Paulo, que encaminharam o projeto de transformação do movimentó em partido político: o Partido Municipalista Nacional. Explicitou-se nesse contexto uma clivagem entre um projeto técnico-modernizador e o projeto político-partidário de subelites políticas rurais alijadas da política "maior". O primeiro desses projetos está associado à elite burocrática do IBGE, DASP, FGV e do INE. Rafael Xavier, secretário geral do IBGE e líder da campanha municipalista, emerge como o articulador central desse projeto, juntamente com Arízio Vianna (presidente do DASP nas décadas de 40 e 50) e Simões Lopes (presidente da FGV e diretor geral do DASP nas décadas de 30 e 40). Para Raphael Xavier, que se torna o primeiro presidente da ABM, a reversão do "abandono das populações rurais" exigia uma mudança profunda na administração municipal, viabilizada mediante o levantamento de informações sobre os municípios brasileiros e programas de assistência técnica. Essa perspectiva, que poderia ser chamada de "ruralismo pedagógico" e modernizador, permeava as propostas das elites burocráticas.(9) Nesse sentido, ele se opunha fortemente à idéia de criação de um partido político. O problema, nessa perspectiva, era precisamente a excessiva politização do município e a conseqüente necessidade de insulamento burocrático da gestão municipal. Daí a necessidade de manter "intocadas pelo veneno que intoxica o nosso ambiente político as vertentes que alimentam o municipalismo". O municipalismo deveria se manter "num plano mais elevado e neutro" (Xavier, 1949).(10)

A resposta governamental à forte visibilidade alcançada pelo "municipalismo" foi a proposta de criação da Fundação dos Municípios. Formulada por uma comissão que incluía elementos destacados da elite burocrática como Xavier e Mário Augusto Teixeira de Freitas (presidente da Sociedade Brasileira de Estatística e idealizador do IBGE), a proposta foi encaminhada pelo ministro da Justiça - e municipalista notório - Dr. Adroaldo Mesquita da Costa e endossada pelo presidente Dutra. A opção por uma forma organizacional autônoma - a fundação - buscava arrefecer a reação intensa às propostas centralizadoras que eram associadas ao Estado Novo. Segundo o ministro Costa "a estrutura de fundação é a única alternativa eficiente e democrática que combina iniciativa privada e ação governamental. Ela evita de uma vez por todas os inconvenientes e a desconfiança que limitam desde o início a ação exclusiva do governo federal" (citado por Pinto, 1968:175). Vale notar que, no seio da própria comissão, setores da elite técnica, como é o caso de Raphael Xavier, opunham-se à ingerência governamental na ABM e na nova fundação, pelo medo da partidarização do municipalismo. Daí haver insistido na proposta de uma fundação privada. Segundo seus formuladores; o governo federal não estaria oferecendo um "cavalo de Tróia" aos municípios. A nova instituição não seria nem o "falso amigo" nem o "pai super protetor", e só "agiria quando requisitada" (idem). O conselho diretor do novo órgão no entanto deixava entrever seu caráter oficialista, pois incluía desde representantes do Estado Maior das Forças Armadas até representações corporativistas da indústria e do comércio.

Para setores amplos do movimento municipalista a proposta do novo órgão representava uma estratégia de cooptação do governo central, com possibilidade de esvaziamento da ABM. Durante o I Congresso Brasileiro dos Municípios, realizado em Petrópolis em 1950, esses setores romperam com a liderança técnica da ABM que havia, após resistência inicial, apoiado a proposta. Juntamente com o projeto de criação do Instituto de Administração Municipal, o projeto da Fundação dos Municípios foi rejeitado e a ABM foi consagrada como o braço técnico do municipalismo. Segundo Joaquim Neves Pereira, um dos fundadores do IBAM, ambas as propostas foram rejeitadas por serem entidades semi-oficiais, que poderiam se tornar, portanto, instrumentos de opressão política contra os municípios adversários do grupo do governo em algum momento (Pereira, 1952:57). Após essa rejeição, a elite burocrática da ABM rearticulou um novo projeto divulgado um mês antes da realização do II Congresso Brasileiro de Municípios, em outubro de 1952, em São Vicente, São Paulo. Buscava-se, assim, a mobilização dos municipalistas para a proposta. O projeto foi divulgado na forma de um manifesto aos prefeitos e vereadores do país. O manifesto reiterava que a nova instituição só atuaria quando solicitada e que não era órgão do governo, nem entidade paraestatal. O IBAM, afirmava-se, era uma sociedade civil fundada por homens desinteressados e de boa vontade.(11)

O locus organizacional do grupo formulador dessas propostas era o DASP, o IBGE, a Comissão Nacional de Assistência Técnica (CNAT) e a recém-criada Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP), da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Esse rapprochement com a FGV deu-se através do programa de cooperação técnica em administração pública, criado no âmbito do Point Four (USAID), que levou à criação da EBAP.(12) É assim que Cleantho de Paiva Leite, presidente da CNAT, membro fundador da FGV e membro do Conselho de Administração do BNDE, passa a ser a figura-chave na formulação da proposta do IBAM. A nova proposta, formulada por Cleantho Leite e Raphael Xavier, foi finalmente endossada pelo movimento municipalista no congresso de São Vicente. Xavier rejeitava qualquer associação estreita entre o IBAM e a ABM por receio de que o controle sobre ela por parte de grupos políticos -o que ele acreditava estar se consolidando-viesse a se estender à nova instituição (entrevista citada em Pinto, 1968:196). Em certa medida Xavier transfere para o IBAM as expectativas que nutria em relação à ABM. Cleantho Leite, por outro lado, entendia que, sem o apoio logístico da ABM, o IBAM não teria condições de se articular com os municípios brasileiros. A ABM, em sua visão, adquiriria legitimidade por acomodar uma instituição de caráter eminentemente técnico, num quadro de críticas crescentes a sua politização. Daí ter denominado o arranjo logrado entre as duas instituições de "casamento de conveniência". (idem, p. 202). Com a oficialização do IBAM, Cleantho Leite torna-se seu secretário executivo e dá início a sua consolidação. O primeiro Conselho de Administração do IBAM era composto por destacados membros da elite burocrática: Raphael Xavier (secretário-geral do IBGE, posteriormente diretor executivo da FGV), Arízio Vianna (DASP), Luis Simões Lopes (DASP, FGV), José Maria Araújo Cavalcanti (DASP e secretário geral do Instituto Brasileiro de Ciências Administrativas), Rômulo de Almeida (Banco Nacional de Crédito Cooperativo e assessor econômico do presidente Vargas). Os outros membros eram destacados municipalistas associados à ABM: Oswaldo Trigueiro (exgovernador da Paraíba) e Arnaldo de Junqueira Ayres.

A ABM: o partido político dos políticos?

A fundação do IBAM inaugura uma clivagem irreversível entre o IBAM e o movimento municipalista. Enquanto a vocação urbana e a dimensão modernizadora-reformista do IBAM se consolida, como analisado, o movimento municipalista assume cada vez mais o formato de uma frente nacional de prefeitos. Com efeito, a assertiva de Schriiitter de que a ABM, na década de 60, representava uma espécie de associação brasileira de políticos profissionais é bastante apropriada (Schmitter, 1971). A última grande mobilização do movimento municipalista ocorreu durante a realização do III Congresso Nacional dos Municípios Brasileiros em São Lourenço, Minas Gerais, quando a ABM propôs um plano abrangente e ambicioso de investimentos municipais e passou a desenvolver intensa atividade de lobby junto ao Congresso e ao executivo. A ABM enviou a todos os seus membros carta-circular pedindo para encaminhar à presidência da República solicitação de "um programa de investimentos e obras em condições de merecer o auxílio da União", programa este a ser incluído na proposta orçamentária para 1955. Face à "campanha sem paralelo nos anais do movimento municipalista" (Cavalcanti, 1960:220) e à extraordinária mobilização ocorrida, foi proposto um Plano Nacional de Obras e Serviços Municipais nos 2.500 municípios brasileiros - a Operação Município. (13) Com base na proposta do senador Jarbas Maranhão, foi encaminhado o projeto de lei criando o plano, que teve longa tramitação no Congresso. A "idéia política central" era que "os municípios, embora melhor dotados a partir das quotas constitucionais de que participam, e apesar de todas as emendas orçamentárias formuladas pelos congressistas nos orçamentos federais, não estão sendo beneficiados no sentido do desenvolvimento econômico-social".(14)

A proposta refletia não só a ideologia redentora do ruralismo, mas também a politização crescente da questão dos desequilíbrios regionais. A estratégia proposta era que se realizasse o que se denominava "acordo interpartidário específico", prevendo a realização de "convênios" (um instrumento "moderno" naquele contexto) entre o governo federal e os municípios. A ABM logrou a aprovação da Operação Município, contra a forte resistência dos representantes de São Paulo, que acreditavam que os municípios ricos não iriam se beneficiar (Maranhão, 1960:164-5). Vale notar que as lideranças municipalistas (e parte importante da elite burocrática) eram originárias de estados periféricos: Araújo Cavalcanti, secretário da ABM (PE), Raphael Xavier (AL), Cleantho Leite (PB), Arízio Vianna (ES), Rômulo Almeida (BA), Océlio de Medeiros (AC).. Elas apoiavam - embora não de forma explícita- a idéia de um Estado forte, que assegurasse transferências e promovesse a modernidade. Na realidade, o centralismo burocrático era atacado sobretudo por esvaziar as áreas rurais. Nessa perspectiva, o conteúdo substantivo do municipalismo é a reversão do abandono das populações rurais. Tal abandono resultava da expansão desigual - porque restrita aos núcleos urbanos de maior porte - da esfera pública sobre o território. Para o movimento paulista, em contraste, o municipalismo era equivalente à autonomia política e financeira.(15) Como assinalado anteriormente, é essa ambigüidade radical que permite explicar a resiliência dessa ideologia.

A trajetória subseqüente do municipalismo foge aos limites do presente ensaio. Ao longo da década de 50, o municipalismo perde gradativamente seu caráter reformista e se transforma no que se poderia denominar "partido político dos políticos". A ascenção de Jânio Quadros - que mantinha vínculos históricos com o movimento - à presidência, levou à criação do primeiro órgão federal de assistência aos municípios, o Serviço Nacional de Assistência aos Municípios (SENAM). Por outro lado, as propostas da Operação Município reemergiram com o Programa de Ação Concentrada do Ministério do Interior, durante o regime militar. Vale lembrar, no entanto, que a intensa mobilização municipalista do pós-guerra levou ao projeto de publicação da Enciclopédia de Municípios Brasileiros, na década de 50, projeto gigantesco de coleta e sistematização de dados realizado pelo IBGE (IBGE, 1958, 36 volumes). Monumento ao município brasileiro, a enciclopédia permanece como símbolo e efígie da modernização que nunca houve.

A política da eficiência: a modernidade vai ao município

IBAM: o DASP urbano?

A proposta de criação do IBAM se inscreve-se no processo histórico de construção organizacional do Estado brasileiro que se inicia a partir de 1930. Incumbido de efetuar a reforma da administração pública federal, instituindo 0 sistema do mérito na seleção de pessoal federal e introduzindo os métodos da moderna administração pública, o DASP constituiu o instrumento privilegiado desse projeto modernizador. A proposta de atuação do IBAM guarda estreita semelhança com a proposta de reforma institucional do DASP. No entanto, no caso do IBAM, a questão era a de como compatibilizar, num contexto democrático e descentralizado, uma estratégia de reforma e modernização da administração municipal por uma instância que não era - e não podia ser - municipal. Implementado durante o Estado Novo, o projeto do DASP, como amplamente investigado, foi inteiramente modelado na reforma do serviço público americano do início do século e nas famosas comissões de eficiência do governo Hoover, na década de 20 (Siegel, 1964; Graham, 1968). O DASP também operou nos estados e municípios, por meio dos órgãos conhecidos como "Daspinhos": Departamentos Administrativos dos Estados e Departamentos das Municipalidades. Estes últimos se originaram de Departamentos de Assistência aos Municípios instituídos após a Revolução de 30, como instrumento de intervenção do Estado nas finanças municipais e na gestão municipal.(16)

Na conjuntura pós-Estado Novo, esse tipo de ingerência de um órgão federal nas instâncias sub-regionais de governo inviabilizou-se politicamente. A reforma administrativa patrocinada pelo DASP pôde ter continuidade apenas na administração pública federal. Na nova conjuntura - balizada pela constituição descentralizante de 46 e pela campanha municipalista - a única alternativa possível para a modernização administrativa dos municípios envolveria uma entidade de caráter privado, à qual os municípios poderiam recorrer voluntariamente. Como assinalado, a resistência à Fundação dos Municípios e o formato organizacional assumido pelo IBAM podem ser entendidos nessa perspectiva.

Para a elite burocrática vinculada à campanha municipalista, o "verdadeiro municipalismo (...) não constitui uma finalidade em si, apesar da opinião em contrário de alguns patriotas delirantes" (Vianna,1960).(17) O objetivo do municipalismo é pragmático: a reforma administrativa a nível local. Essa reforma compreenderia objetivos múltiplos e abrangentes, a serem perseguidos através de atividades de assistência técnica: ampliação das bases fiscais dos municípios; elaboração de cadastros fiscais; instituição do sistema de mérito na política de pessoal; criação de planos de cargos e salários; racionalização administrativa; organização e métodos na administração municipal; implementação de modernos procedimentos e técnicas de elaboração e controle orçamentário e de prestação de contas; e racionalização da provisão de serviços urbanos.

A consolidação do IBAM, enquanto agência urbana, teve como contrapartida o enfraquecimento de seus laços com a ABM. Esses laços se romperão formalmente quando o estatuto do IBAM for reformulado, em 1959, e a ABM perder a prerrogativa de indicar quatro membros de seu conselho consultivo. A consolidação do IBAM e seu progressivo afastamento em relação ao ruralismo está associado com o programa de cooperação técnica em administração pública criado no âmbito do Point Four (USAID), e, em menor medida, com as Nações Unidas. É no quadro dessas démarches de cooperação que Diogo Lordello de Mello, assessor da Associação de Municípios do Paraná, se especializou em administração urbana na University of Southern California. Com sua contratação como diretor assistente para o IBAM abriram-se as perspectivas de criação de uma linha de atuação distinta do municipalismo ruralista. Lordello, figura que veio a se tornar lendária na área da administração municipal no Brasil, passou a difundir técnicas modernas de gestão municipal no país.(18) O apoio financeiro da USAID e a articulação com Gerald Hardy, consultor em administração urbana da Comissão Consultiva de Administração Pública, criada no âmbito do Point Four, foram instrumentais para a viabilização do novo órgão.(19)

Ao longo da década de 50, e sobretudo na de 60, o IBAM passou a envolver-se em atividades de consultoria, principalmente em projetos de administração de sistemas de abastecimento de água e de cadastramento municipal. Em 1963, o IBAM contou com um contrato da USAID para a administração de sistemas de abastecimento de água da Fundação Serviços Especiais de Saúde Pública, e com um contrato de treinamento de técnicos venezuelanos, viabilizado pela USAID. A consolidação do perfil urbano do IBAM efetivou-se em 1966, quando, com apoio da Ford Foundation, foi criado seu Centro de Estudos e Pesquisas Urbanas. Para atrair e popularizar seu programa de trabalho, o IBAM passou a promover, a partir de 1954 e com a revista O Cruzeiro, o concurso anual dos cinco municípios de "maior progresso" do país. Baseado na experiência da National Municipal League americana e da revista Look, o concurso passou a contar com o apoio da USAID-Point Four em 1956. Nesse movimento, o IBAM inaugurou no Brasil a cultura da eficiência na esfera municipal.(20)

Como amplamente discutido na literatura especializada, a emergência do planejamento urbano enquanto campo de intervenção do Estado esteve, num primeiro momento, associada a intervenções urbanísticas de remodelação urbana e a ideologias estéticas e de higiene em grandes cidades.(21) Em um segundo momento, a estruturação desse campo de intervenção estatal está associada à questão da gestão urbana. De menor visibilidade, e talvez por isso menos conhecida, a modernização da gestão constitui uma dimensão central da expansão da esfera pública - vale dizer, da construção do moderno Estado brasileiro. O projeto de modernização da gestão municipal tinha como paradigma histórico a reforma municipal americana da Progressive Era (1900-1914). O projeto de reforma de gestão nos EUA buscava isolar a burocracia dos governos locais da influência das political machines. Entre suas principais inovações está a criação de um executivo municipal técnico, o city manager - em lugar de um comitê de vereadores das machines. A reforma, portanto, buscava revolucionar a cultura política americana do século XIX, dominada, como a brasileira, por forte clientelismo e patronagem. A reforma foi fundamental na construção da esfera pública e da "capacidade de Estado" nos EUA (Skowronek, 1982). O caso brasileiro se diferencia do americano, porque a reforma administrativa nos EUA teve mais sucesso nos níveis estadual e municipal do que no federal (Schiels, 1977). O projeto do DASP, como assinalado, se restringiu, em larga medida, à área federal.

Os casos americano e brasileiro se diferenciam fundamentalmente, na realidade, por dois fatores macrossociais que têm importantes conseqüências para o sucesso de reformas que visam à eliminação da patronagem. Em primeiro lugar, no caso americano tratava-se literalmente de construir uma burocracia pública profissionalizada cuja emergência, enquanto ator coletivo, ocorreu após a consolidação dos partidos políticos e da democracia de massas. No caso brasileiro - à semelhança dos casos francês e alemão - a emergência de uma burocracia profissionalizada precedeu historicamente a emergência dos partidos, seqüência que favoreceria, segundo Shefter (1978), a constituição de uma esfera pública racionalizada. No Brasil, essa burocracia que se consolidou durante o Império restringia-se, no entanto, ao poder central (Carvalho, 1980) e, mais importante, foi desarticulada com a transição para a República Velha. A questão assim não era a de criar uma burocracia pública como nos Estados Unidos - a partir do zero -, mas de reformar uma estrutura patrimonialista.

O paradigma americano de reforma municipal inspirou o padrão de intervenção do Estado na questão municipal do Estado Novo à década de 50. Esse paradigma passou ao largo da influência do urbanismo moderno preconizado pelos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM) e do movimento city beautiful, que influenciaram os círculos de arquitetos e urbanistas brasileiros. A influência do paradigma americano pode ser encontrada na década de 30, no Instituto Politécnico do Rio de Janeiro, na Escola de Engenharia de São Paulo e, sobretudo, no Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT) em São Paulo. O IDORT promoveu, em 1936, a Jornada da Organização Científica na Administração Municipal, que divulgou amplamente as reformas americanas.(22) Entre os municipalistas históricos - que eram sobretudo juristas e especialistas em administração pública - a influência desse paradigma é evidente pelas recorrentes referências positivas à reforma municipal americana e à figura do city manager (Duarte, 1942:1078; Carvalho, 1942:135-6; Medeiros, 1947:115;8; Medeiros, 1946b:127-40). Particularmente revelador da influência americana entre os municipalistas históricos é o fato de um de seus membros mais atuantes, Océlio de Medeiros, ter dedicado um livro (Medeiros, 1947) ao especialista americano em administração municipal, Donald Stone.

No pensamento urbanístico da década de 30, a influência americana se fez sentir sobretudo entre engenheiros.(23) Essa influência, no entanto, era restrita a comentários especializados sobre as reformas das grandes cidades brasileiras, não logrando um impacto significativo na mudança do padrão de gestão municipal no país. Esse projeto, na realidade, esteve associado ao IBAM e à influência do movimento Economia e Humanismo chefiado pelo padre e economista francês Louis Lebret (Lamparelli, 1993). O IBAM, como também o IBGE e o DASP, do qual deriva, inauguram uma cultura organizacional pública, centrada na estatística e no orçamento e legitimam um "saber moderno" (Schwartzman, 1987) - a administração municipal - como campo disciplinar. É nesse movimento que se dá o deslocamento da engenharia municipal no sentido da administração municipal. O grupo do padre Lebret, em contraste, introduz no planejamento urbano e regional a problemática do desenvolvimento econômico e social. Enquanto o impacto do IBAM era difuso e anônimo - a clientela de prefeitos interioranos que se formou na leitura do famoso Manual do Prefeito -, o movimento de Economia e Humanismo contribuiu para a formação de uma elite reformista de especialistas em planejamento. São, portanto, matrizes distintas que informaram propostas específicas de modernização urbana.

Pode-se afirmar que o relativo insucesso do projeto de mudança na gestão municipal no Brasil, que permanece essencialmente patrimonialista até o presente, guarda equivalência com o malogro do agrarismo modernizador, ao qual se filia historicamente. Este último sucumbiu face às resistências das estruturas oligárquicas do campo. O conteúdo revolucionário de um projeto de modernização dos municípios dificilmente poderia ser exagerado: ele implicaria uma revolução profunda não só na cultura política, mas também no sistema político brasileiro. O malogro do projeto de mudança, no entanto, não foi absoluto. Nesse sentido, ele reflete a própria modernidade brasileira, inconclusa e desigual.(24)

Municipalismo, uma solução em busca de um problema?

O municipalismo, através da história brasileira, informou ideológica e programaticamente projetos fundamentais associados à modernização do país. De uma crítica à centralização política e à ausência de participação e representação, ele se associou à crítica autoritário-modernizante de cunho agrarista ao sistema sócio-político da República Velha que, no Estado Novo, enxergou no município o espaço plebiscitário e pré-político por excelência. Atingido o auge mobilizatório de sua trajetória durante a redemocratização do país na década de 40, o municipalismo se fissura em uma vertente política representada pela criação da ABM e uma vertente tecnocrática associada ao IBAM. Na primeira dessas vertentes o municipalismo perde seu caráter militante e se transforma numa frente nacional de políticos provincianos. Na segunda, o municipalismo perde seu caráter redentor e ruralista e adquire um caráter urbano-metropolitano.

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